terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Literatura, evento manifesto da vida

 

Literatura: evento manifesto da vida


Não seria obvio ao menos inicialmente

Pensar pelo menos inadvertidamente

Que toda literatura neste mundo existente

Seria necessariamente um fenômeno manifesto

Daquilo que conhecemos como vida humana?


Enquanto arte, de certo.

Traduz a existência em prosa e verso

Comunicação, linguagem, afeição

Sem faltar ritmo, sonoridade, afinação

Estética do belo que inspira perfeição


Nos fluxos da razão e do desejo

A literatura desreduz a vida à biologia

Numa expressão molecular de sentido

Que cria e recria em corpos e cérebros

Caldo semiótico e afetivo do divinamente humano


Mas e quando a vida se torna maquínica

E se limita a uma lógica dualística

Que impede a potência criativa

E deixa de ser reviravolta inevitável

Que se pulveriza e se hibridiza?


Um desvio, uma brecha, um escape é preciso

Resistência coordenada para sua manutenção

Urgentemente retomar sua posição

Novamente imaginar, sentir, criar

A literatura reconvocar: volta vida!

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

 

Enfim, a esperança!



Ainda que aquele filósofo dissesse

De maneira clara ou discreta

O homem é ser-com-no-mundo

Escapou-lhe ser menos sutil

Ao não dizer com-no da esperança


Pois como buscar o sentido

Como corporar o corpo

Como desvelar o fenômeno

Como compreender a vida

Sem a esperança?



Toda desocupação do cuidado

Toda ausência de angústia

Todo desespero do desfecho

Todo medo do arriscar-se

Esvai-se no brilho da esperança


Afinal,

A possibilidade de liberdade

A escolha pela responsabilidade

A essência da verdade

Advém da esperança


Experienciar a esperança é isso

Expectativa de um desejo

Supor, sonhar, presumir

Enfim

É um encontrar-se com a existência!


Ricardo Valentim


domingo, 14 de junho de 2020

 

Isolamento: potência de si



Dias sim, dias não

Dias corridos, atrapalhados, atropelados

Dias parados, estáticos, nebulosos

Dias compromissados, planejados, estudados, orquestrados

Dias inesperados, inusitados, irrequietos, desordenadamente imprevisíveis


Dias… dias… dias…


Um dia…


Um dia chegou a pandemia, chegou o isolamento, chegou o confinamento

Em meio ao quarto período da faculdade de psicologia, em pleno meio de semestre

As águas e promessas de março não tinham muito sentido naquele momento

Afinal, o futuro incerto e até então nunca vivido não poderia prometer nada


Na única certeza de que nada se sabia foi decretado o isolamento, fiquei em casa

Na confiança de que tudo se resolveria em quinze dias, talvez um mês

Mas a incerteza se tornou bastante desafiadora

Colocando à prova a todo momento o atrevimento da esperança


Havia muitos projetos, muitos mesmo. Criei até uma listinha para esse 2020


Desde os triviais, como ler mais para a monografia

Desde tentar ser mais saudável, como deixar de comer açúcar refinado, pão e biscoito

Desde sair mais, ir a exposições de arte, que amo

Desde aproveitar o cinema que tem promoção toda segunda-feira

Desde fazer a primeira tatuagem, beber toda sexta-feira uma cerveja mesmo que sozinho

Viajar, buscar um estágio, pesquisar sobre adoção

Buscar uma espiritualidade, que havia sido deixada de lado há algum tempo


De repente…


Tudo suspenso. Uma suspensão absurdamente arbitrária

Um abandono sem luto que me deixou perdido


Num primeiro momento, o que vai acontecer?

Mais a frente, o que será da faculdade, das aulas, dos cursos?

Mas no final, o que será de mim?


Como um relógio que não se vê quem sorrateiramente lhe tira uma peça

Vi-me parado sem saber o que fazer

Os ponteiros não sabiam mais para onde apontar

Horas para que, horários para quem? Os compromissos foram todos cancelados

Agora não seria suficiente uma regulação emocional. Era preciso algo mais forte

Era preciso uma reprogramação existencial


Nessa minha formação em psicologia tenho sofrido vários atravessamentos

Mas já na filosofia, aprendi que crise é uma palavrinha que significa decisão

Diante de um obstáculo é preciso necessariamente arriscar-se numa escolha, num caminho 

Naturalmente, com medo, com angústia, mas era preciso seguir adiante


No caso da pandemia, qual seria o caminho a percorrer?

Sucumbir ao medo da incerteza ou

Fazer da incerteza um material favorável para reinventar-se a cada dia?

Era preciso buscar uma resposta


Li um texto de uma amiga que falava da minha necessidade de encarnar os conceitos

Era sua monografia do curso de psicologia

Ela dizia que em algum momento seria preciso vivenciar o que se aprendeu na faculdade

Dar um passo além e buscar perceber

Se realmente os conceitos até então aprendidos poderiam ser encarnados na sua pele, no seu corpo

Para saber se eles realmente lhe dariam algum sentido e assim

Decidir se eles deveriam ser verdadeiramente seguidos, assumidos ou deixados de lado


Ter essa perspectiva de encarnação foi muito importante pra mim

O que, de fato, iria fazer parte do meu corpus operandi como psicólogo?

E seria possível já experienciar isso agora nessa pandemia, nesse isolamento?

Nesse momento tão especial em que não há escapes para viver sem mim?


O isolamento me fez perceber mais a fundo

O quanto eu, ser humano, sou múltiplo

De demandas, de necessidades, de fragilidades, de fortalezas

De como sou fluxo

O quanto sou energia que não se sustenta sozinha, mas que precisa

Do sol

Do mar

Do circular

Do espaço

Do outro


Estar em quarentena tem sido uma oportunidade de um mergulho para fora de mim

Como o peixinho que dá um salto para fora e sobre o aquário

Na possibilidade de ver o que está a sua volta 

Mesmo que depois tenha que retornar porque não pode viver sem aquela água

Mas que agora está diferente

Porque pode perceber o que realmente está em jogo


E o que está em jogo é ver o que realmente é potencial para a vida


Muitas lembranças de muitos conteúdos se mostraram presentes

Momentos bem marcados nessa dinâmica de encarnação

Do que já havia sido aprendido como estudante de psicologia

De modo especial, as aulas de fenomenologia e de sensação, percepção e memória


Se de um lado, o evento da pandemia se desnudava na minha frente

De ou, era necessário senti-lo enquanto acontecimento encarnado


De fato, o isolamento favorecia a um aprofundamento psíquico e corpóreo

Afinal, o corpo, portador do conhecimento de si, não é o ponto de partida para uma grande estrada?

Mas como manter esse corpo em movimento, mantê-lo em extensão nessa pandemia?


Após uma semana de paralisação das aulas desde a decretação oficial de isolamento

As aulas começaram a acontecer no modo on line

Realmente muito difícil no início

Muita ansiedade com esse novo modo de estar presente

Aprendendo psicologia por videoconferência

Estava muito disperso, sem foco

Angustiado por não saber quanto tempo iria durar


Veio-me a lembrança de um curso intitulado: medicina e espiritualidade feito ano passado

Nele foi colocada uma questão importante: o que é felicidade?

ela vem da palavra felix que significa fruto, ou seja, aquilo que se constrói

Nesse momento, fez todo o sentido

O que eu estava construindo para mim nessa pandemia?


A experiência é que dá sentido a existência

Ela cria laços

Decidi então que eu seria esse sujeito que experiência essa pandemia

Na perspectiva daquele que aceita o desafio, como um empoderamento


Pela vivência do isolamento busco dar mais sentido

Ao que sou

Ao que me acontece

Ao que se passa dentro de mim

Com atenção e aprendizagem

Com o talento do encontro e do reencontro de mim

Com presença

Com vida


Porque só no viver é que se dá sentido a vida.


Ricardo Valentim


sexta-feira, 19 de abril de 2019




O quanto a gente não se vê

O que sabemos a nosso respeito?
Uma verdade, mas as verdades, não sabemos
Percepção plena não nos é permitida
Conjectura domesticada, controlada, restrita.

A única forma possível não é a objetivamente dada
Rótulo costumeiro em torno do qual se organiza o olhar
Despida da corporeidade daquela alma subjetiva
Ausência experiencial da integralidade da vida

Sem linguagem, sem interpretação, sem consciência
Há um outro rico mundo perceptivo sensorial
Que não prescinde de tempo, espaço, memória
Também de fora para dentro, não apenas de mim para fora

Movimento dialético na direção do mundo
Não mais apenas restrito naquilo que encerra a discussão
Capacidade subjetiva é receber o outro antes de julgá-lo
Relacionamento com responsabilidade, reposta ao que faço

Relação de dar e receber, composição e movimento
Reconstrução do psiquismo, necessária nova forma de perceber
De como se olha pro mundo, pros outros e pra si mesmo
De como se relaciona com o que vê, com o que sente, sentido do ser

Ricardo Valentim


sábado, 23 de março de 2019



O olhar cego (2ª parte).



Percepção algo a ser construído
De certo, sem graça, o biologicamente dado
Melhor arriscar-se, despretensão em atribuir
Novos sentidos outrora, objetivamente criados


Percepção, um acontecimento encarnado
Hoje desencarnada hiperestimulação mental
Reducionismo equivocado do próprio existir
Excluído o sentir, adoecimento sensorial


Num mundo de pessoas razoavelmente limitadas
Necessidade do olhar cego não nomeado
Que apreendem o mundo não apenas pela linguagem
Exigência d’uma percepção completa, convite desejado


Para além daquelas palavras úteis
Para além do contorno do mundo concreto
Percepção é experiência de ser poeta
Delineio imagético, subjetivo, liberto


Percepção para compreender? É para incorporar
Ser mais sensível; menos razão, mais emoção
O nome objetivo empobrece a imagem
Olhar subjetivo transvisto, voltar a humanização

Ricardo Valentim

domingo, 17 de março de 2019

O olhar cego (1ª parte).

Subcortical côncavo e/ou cortical convexo.
Mundo projetado ou/e recebido paralelo.
Ora não atravessado, ora criado interpretado.
Por vez, um olhar objetivo; por outra, geográfico.
 
Movimento perceptivo num equilíbrio relacional.
Da sensorialidade não consciente ao delineio espacial.
Quando não imaginativo, subjetivista exagerado.
Comprometimento adaptativo, conflitivo, neurotizado.

Sujeito e objeto elementos da percepção.
Não antes interpretar, olhar a priori a relação.
Num outro em que o mundo se abre a nós.
Sem o vício filtrante de um mesmo algoz.

O andar por essa via é uma vida de mão dupla.
Sem norma rígida, estereotipada, pré-concebida.
Seguimos no tocar o outro, voltamos no ser tocado.
Entrelaçamento esvaziado, pleno e cego, experienciado.

 

Ricardo Valentim

terça-feira, 12 de março de 2019






Espelho, espelho não meu.


O que é aquilo que vejo?
O que é aquilo que domino?
É o domesticado daquilo que espero.
Do que vejo no meu não puro íntimo.


Versão incerta incompleta de mim.
Não reflete aquilo que sou.
Sem fluxo, sem risco, sem vida.
Espelho estável, bem seguro estou.


Mas como suster minha falta de sentido?
Em meu vazio estéril de movimento.
Um olhar para mim sem definir meus limites
Daquele afeto que o espelho me esconde no medo


Mas olhar para o meu não espelho é preciso.
Estar nele num desejoso sinal de querer.
Para ser atravessado, exposto no sentir.
Numa experiência transformadora do meu ser.


Cada tempo se estrutura essa minha história.
Que conta um conto desse meu existir.
Agora vou olhar-me no meu não espelho sorrindo.
Processo de reconstrução do meu ver em mim.

Ricardo Valentim