Isolamento: potência de si
Dias sim, dias não
Dias corridos, atrapalhados,
atropelados
Dias parados, estáticos, nebulosos
Dias compromissados, planejados,
estudados, orquestrados
Dias inesperados, inusitados,
irrequietos, desordenadamente imprevisíveis
Dias… dias… dias…
Um dia…
Um dia chegou a pandemia, chegou o
isolamento, chegou o confinamento
Em meio ao quarto período da
faculdade de psicologia, em pleno meio de semestre
As águas e promessas de março não tinham muito sentido naquele momento
Afinal, o futuro incerto e até então
nunca vivido não poderia prometer nada
Na única certeza de que nada se sabia foi decretado o isolamento, fiquei em casa
Na confiança de que tudo se resolveria em quinze
dias, talvez um mês
Mas a incerteza se tornou bastante desafiadora
Colocando à prova a todo momento o atrevimento da esperança
Havia muitos projetos, muitos mesmo. Criei até uma listinha para esse 2020
Desde os triviais, como ler mais para a monografia
Desde tentar ser mais saudável, como
deixar de comer açúcar refinado, pão e biscoito
Desde sair mais, ir a exposições de
arte, que amo
Desde aproveitar o cinema que tem
promoção toda segunda-feira
Desde fazer a primeira tatuagem, beber
toda sexta-feira uma cerveja mesmo que sozinho
Viajar, buscar um estágio, pesquisar
sobre adoção
Buscar uma espiritualidade, que havia
sido deixada de lado há algum tempo
De repente…
Tudo suspenso. Uma suspensão
absurdamente arbitrária
Um abandono sem luto que me deixou
perdido
Num primeiro momento, o que vai
acontecer?
Mais a frente, o que será da
faculdade, das aulas, dos cursos?
Mas no final, o que será de mim?
Como um relógio que não se vê quem sorrateiramente lhe tira uma peça
Vi-me parado sem saber o que fazer
Os ponteiros não sabiam mais para onde apontar
Horas para que, horários para quem? Os compromissos foram todos cancelados
Agora não seria suficiente uma regulação emocional. Era
preciso algo mais forte
Era preciso uma reprogramação
existencial
Nessa minha formação em psicologia tenho sofrido vários atravessamentos
Mas já na filosofia, aprendi que
crise é uma palavrinha que significa decisão
Diante de um obstáculo é preciso necessariamente arriscar-se numa escolha,
num caminho
Naturalmente, com medo, com angústia, mas era preciso
seguir adiante
No caso da pandemia, qual seria o
caminho a percorrer?
Sucumbir ao medo da incerteza ou
Fazer da incerteza um material favorável para reinventar-se a cada dia?
Era preciso buscar uma resposta
Li um texto de uma amiga que falava da minha necessidade de encarnar os
conceitos
Era sua monografia do curso de psicologia
Ela dizia que em algum momento seria preciso vivenciar o que se aprendeu na faculdade
Dar um passo além e buscar perceber
Se realmente os conceitos até então aprendidos poderiam ser encarnados
na sua pele, no seu corpo
Para saber se eles realmente lhe dariam algum sentido e assim
Decidir se eles deveriam ser verdadeiramente seguidos, assumidos ou deixados de lado
Ter essa perspectiva de encarnação
foi muito importante pra mim
O que, de fato, iria fazer parte do meu corpus operandi como psicólogo?
E seria possível já experienciar isso agora
nessa pandemia, nesse isolamento?
Nesse
momento tão especial em que não há escapes para viver sem mim?
O isolamento me fez perceber mais a
fundo
O quanto eu, ser humano, sou múltiplo
De demandas, de necessidades, de fragilidades, de fortalezas
De como sou fluxo
O quanto sou energia que não se sustenta sozinha, mas que precisa
Do sol
Do mar
Do circular
Do espaço
Do outro
Estar em quarentena tem sido uma
oportunidade de um mergulho para fora de mim
Como
o peixinho que dá um salto para fora e sobre o aquário
Na possibilidade de ver o que está a sua volta
Mesmo que depois tenha que retornar porque não pode
viver sem aquela água
Mas que agora está diferente
Porque
pode perceber o que realmente está em jogo
E o que está em jogo é ver o que
realmente é potencial para a vida
Muitas lembranças de muitos conteúdos se mostraram presentes
Momentos bem marcados nessa dinâmica de encarnação
Do que já havia sido aprendido como estudante de psicologia
De modo especial, as aulas de
fenomenologia e de sensação, percepção e memória
Se de um lado, o evento da pandemia se desnudava na
minha frente
De ou, era necessário senti-lo enquanto acontecimento encarnado
De fato, o isolamento favorecia a um aprofundamento psíquico e corpóreo
Afinal, o corpo, portador do conhecimento de si, não é
o ponto de partida para uma grande estrada?
Mas como manter esse corpo em movimento, mantê-lo em extensão nessa
pandemia?
Após uma semana de paralisação das
aulas desde a decretação oficial de isolamento
As aulas começaram a acontecer no modo on line
Realmente muito difícil no início
Muita ansiedade com esse novo modo de estar presente
Aprendendo psicologia por videoconferência
Estava muito disperso, sem foco
Angustiado por não saber quanto tempo
iria durar
Veio-me a lembrança de um curso intitulado: medicina e espiritualidade feito
ano passado
Nele foi colocada uma questão importante: o que é
felicidade?
ela vem da palavra felix que significa fruto, ou seja, aquilo que
se constrói
Nesse momento, fez todo o sentido
O que eu estava construindo para mim
nessa pandemia?
A experiência é que dá sentido a
existência
Ela cria laços
Decidi então que eu seria esse sujeito que experiência essa pandemia
Na perspectiva daquele que aceita o desafio, como um empoderamento
Pela vivência do isolamento busco dar mais sentido
Ao que sou
Ao que me acontece
Ao que se passa dentro de mim
Com atenção e aprendizagem
Com o talento do encontro e do reencontro de mim
Com presença
Com vida
Porque só no viver é que se dá
sentido a vida.
Ricardo Valentim